Conheça Essa História


Nesse espaço constam os relatos de algumas histórias que vivenciamos na jornada de nosso trabalho. Ressaltamos que os nomes dos usuários utilizados são fictícios com intuito de proteger a sua imagem e privacidade.


História narrada pelo Agente Comunitário de Saúde – ACS Anderson Luiz Gomes

Rio de Janeiro, 25 de maio de 2012.
Nome: Joana
Idade: 49 anos
Altura: 1,45m
Peso: 36Kg
Observação: Dependente químico (Crack, álcool); Deficiente físico; Subnutrição; Desidratação; Úlcera nas costas EstágioIII; Situação de Vulnerabilidade Social.




Joana e uma nova história de cuidados


Joana moradora do Jacarezinho há cerca de 30 anos é conhecida por todos na região. Seus vizinhos comentam que vivia com simplicidade e que possuía um temperamento difícil – por vezes bebia e costumava brigar com sua família e vizinhos.
Joana mãe de 4 filhos, avó de dois, já havia trabalhado em um salão de beleza como manicure e seu último ofício era o de limpar as ruas como gari. Foi parar na rua após o término do seu casamento de muitos anos e passou a usar todos os tipos de drogas, principalmente crack e álcool. Seu pai (evangélico) disse que já havia tentado várias vezes tirá-la das drogas, pois não aceitava esse comportamento, mas suas tentativas haviam sido em vão.
Após a sua separação, Joana foi para a rua onde vive há mais de 10 anos. Joana tem histórico de internação psiquiátrica, fora internada várias vezes, tendo passado por diferentes instituições, inclusive no CAPS AD, no Engenho de Dentro.
Joana foi encontrada em meio a cracolândia em um estado de grave vulnerabilidade social. Seu estado era chocante. Mal conseguia falar, sua aparência era a de alguém que estava à espera do pior; estava ali deitada, em meio a um local altamente insalubre, morrendo aos poucos.
Já que o seu estado era gravíssimo, nossa equipe ao encontrá-la precisou buscar internação. Após muita mobilização conseguimos interná-la na UPA de MANGUINHOS. Ela apresentava alto índice de desitratação, subnutrição, fissuras e uma enorme úlcera em estágio III em suas costas. Não tinha mais controle esfincteriano, nem tampouco conseguia sentar. Relatava, ainda, muitas dores em seu braço direito, que já havia perdido a sua movimentação fazia muitos anos em razão de um acidente sofrido na rua. Joana, de 49 anos de idade, possui um corpo coberto por marcas e cicatrizes chocantes - impressões de um corpo que experienciou toda espécie de sorte na rua; uma vida dura, literalmente de pedra. Devido o seu extremo estado de deteriorização, Joana aparentava ser bem mais velha do que de fato é. Foi difícil conceber que o seu pai, um homem de mais de 80 anos, não era o seu irmão ou o seu marido, já que sua aparência era a de uma mulher de terceira idade.
Foram necessários três dias de internação para que ela obtivesse alta médica. Seu pai foi visitá-la no decorrer de sua internação juntamente com nossa equipe de rua. Demonstrava preocupação e nos contava sobre a história de sua família, especialmente da filha, mostrando fotos e relembrando o quanto ela fora uma mulher muito bonita. Ele explicava que sua filha possuía uma casa na comunidade que havia sido destruída e depenada pelos seus vizinhos, e que ela tinha direito de receber o seu benefício dado pelo governo, mas que estava sem recebê-lo.
Joana ouvia o seu pai e parecia sentir vergonha quando ele falava sobre a sua relação com as drogas. Pedia para que seu pai rezasse por ela e para ficar sozinha com Daniel (nosso coordenador) a quem confiou seus relatos, dores e questões, o que foi fundamental para que pudéssemos compreender de mais perto aquela história.
A equipe se dividiu para que fosse traçado, assim, diferentes estratégias de cuidado no sentido de investigar, compreender e dar prosseguimento ao acompanhamento do caso.
Após a alta, Joana foi levada para casa de seu pai que morava com a neta grávida de seis meses, seu marido e seus dois filhos. A casa era muito pequena, cerca de 30m2, ou seja, muita gente para pouco espaço. Além disso, havia uma antiga dificuldade relacional, com muita mágoa e histórias familiares conturbadas.
Como tudo tem os seus percalços, a família relutou em aceitar as condições da paciente. Fui por diversas vezes a casa de Joana acompanhando a enfermagem e os técnicos para orientarmos o manejo da família com ela e a administração da medicação. Por inúmeras vezes precisamos orientar, também, a necessidade de realizar a higiene e a melhor forma de alimentá-la. A sua família apresentava grande resistência e ameaçava insistentemente em despejá-la. Joana teve piora em seu quadro e precisamos interná-la novamente, dessa vez na UPA do Engenho de Dentro.
Em paralelo, a equipe continuava a trabalhar a família no sentido de dar apoio e orientação. A filha de Joana foi encaminhada para acompanhamento psicológico em nossa clínica (Clínica Anthidio Dias da Silveira), não tendo comparecido em nenhum momento, infelizmente. E, também, trabalhávamos a parte social auxiliando na recuperação da documentação de Joana; que descobrimos estar nas mãos de terceiros.
Joana ficou por mais alguns dias internada, retornando após a alta para a casa de seu pai. De modo concomitante, conseguimos localizar onde ficava a casa de Joana. Estava em estado total de depredação e necessitaria ser reconstruída para se tornar um espaço minimamente habitável novamente. Contudo, foi um consenso na equipe que para que isso ocorresse Joana precisaria, além de voltar a receber o seu benefício, de suporte e acompanhamento psicológico para participar de todo esse processo. Portanto, teríamos de discutir isso mais uma vez em uma possível etapa posterior.
Com apoio da nossa rede CRAS, CREAS, parceiros e familiares e após muita dificuldade, conseguimos retomar o direito do benefício previdenciário de Joana. E demos continuidade ao seu acompanhamento clínico agora domiciliar, já que ela estava na casa de seu pai. Era, assim, feito o curativo de sua úlcera e o auxílio na administração de sua medicação, assim como acompanhamento, orientação e manejo a ser realizado pela família.


Joana voltou a morar com seus familiares e, atualmente, foi feito o encaminhamento do seu caso para uma equipe da nossa clínica da sua área adstrita e ao NASF (Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira), já que ela não se encontra mais em situação de rua. Com isso, nossa equipe acompanha a sua evolução agora por meio de uma equipe parceira.
Hoje a vemos circulando pelo Jacarezinho, mas de uma forma bem diferente.





História narrada pelo Agente Comunitário de Saúde – ACS Fábio Tavares


Rio de Janeiro, 26 de junho de 2012.
Nome: Mister M.
Idade: 19 anos
Altura: 1,70m
Peso: 65Kg
Observação: Dependente químico (Crack); Deficiente físico (queimadura na articulação da perna; perda da movimentação); Situação de Vulnerabilidade Social



O Jovem Perneta - PARTE 1

Vou contar a história de um jovem de 19 anos que chamarei de Mister M.. A história começa assim:
Na manhã de abril de 2012, a equipe de rua, da Clínica de Saúde da Família Anthidio Dias da Silveira, como de costume passa por alguns locais conhecidos da região conhecida como “cracolândia”, um local onde (como bem descreveu o psicólogo da nossa equipe, Rodrigo) já de longe vemos miséria, pobreza, degradação, segregação a céu aberto. De perto, o mais terrível cenário já contemplado.
Depois de alguns dias de “pedra”, todos são iguais, corpos torrados de sol, descalços, trajando o mínimo de trapos para assegurar alguma intimidade. Os corpos esquálidos dos homens e das mulheres/meninas assustados e negligentes a qualquer contato que não envolva um copo como forma de mediação. As crianças nos dias de chuva se acotovelam como um mar negro e sujo se esquentando através do contato mútuo, inocentemente sexualizado.
Muitos ficam na entrada da favela, em frente a um colégio público, não para estudar, mas sim para morar e consumir crack ininterruptamente. Moléstias de um campo de batalha: desnutrição, desidratação, DST´s, mutilações (alguns sem pernas braços, ou outras partes do corpo), traumatismos (paulada no braço, pazada no rosto), abandonados até a morte, pois em alguns casos o apodrecimento é tamanho que nem entre os próprios usuários conseguem algum apoio e ali jaz mais um. Entre os mais velhos, bebuns, que quando comparados aos crackeiros parecem felizes e serenos, amistosos a um bom papo, e se possível a um abraço.
Muitos não sabem mais como foram parar ali, ou até mesmo como sair. Voltar para casa, jamais (não dizem o nome dos parentes, dos domicílios e se lembram não parecem interessados em relembrar suas origens). Cuidar do corpo, só com alguma insistência acolhedora, sem exageros, e quando a situação já está evidentemente crítica. Um complexo mercado de lixo, no meio do lixo, aonde esse resto serve de fonte de produção de mais gente, mais copos e, por conseguinte, mais fumaça. Em dias de chuva o campo se obscurece, pois o aglomeramento parece aumentar toda a insalubridade do ambiente. A rua parece exercer alguma atração irresistível aos usuários de pedra, pois a dificuldade de realizar qualquer movimento, no sentido mais literal do termo é radicalmente difícil.
Foi nesse contexto que conhecemos Mister M., sujo, cansado, olhos tristes, preocupados, possuía uma cicatriz de queimadura na articulação da sua perna direita, que não a deixava esticar. Após levá-lo para clínica e receber a consulta do nosso médico - que chamarei aqui carinhosamente de Dr. House (fazendo referência ao personagem principal, um infectologista e nefrologista que se destaca pela sua capacidade de elaborar excelentes diagnósticos diferenciais, de uma aclamada série médica norte-americana) - foi avaliado que o paciente, além dos cuidados de higiene básicos, necessitava de uma cirurgia plástica. Com isso, Mister M. nos relatou o que tinha causado sua queimadura:
Há cerca de um ano atrás, Mister M., tinha um lar e morava com sua família. Usuário de crack, dependente da droga, resolveu pegar, sem nenhum conhecimento ou permissão, o dinheiro da sua irmã para suprir a sua necessidade de consumir a droga. Mister M. gastou todo o dinheiro da irmã, consumiu as pedrinhas malditas e retornou para sua casa para dormir. Durante aquela noite, a irmã de Mister M. percebeu que seu dinheiro havia sumido e descobriu o que tinha acontecido – seu irmão havia fumado o seu dinheiro inteirinho.
A irmã que tem 1,90 de altura, pesando 130 kg e consumida pelo ódio, foi até a cozinha e colocou água para ferver na panela. Mas, dessa vez, não era para fazer o café ou o macarrão que Mister M. tanto gostava. Mister M. em seu sono profundo nem imaginava o que estava por vir. Sua irmã pegou a panela com água fervendo e, com o seu irmão dormindo, jogou em sua perna. Depois advertiu o irmão que não haveria próxima vez, pois caso aquilo se repetisse, ela iria matá-lo. Em seguida mandou o seu irmão para o hospital sem o dinheiro da passagem.
Algumas semanas após sua alta do hospital, ele retornou para o seio de sua família amada e acolhedora. Os dias se passaram, a rotina acontecia naturalmente - a convivência voltava a ser o que era, assim como o amor entre irmãos era resgatada, o inesperado acontece: Mister M. tem uma recaída. A história se repete, o dinheiro da irmã some. Mais uma vez Mister M. fuma tudo nas pedrinhas do mal.
Ao terminar de fumar, toma o rumo de casa, pedalando pelas ruas naquelas bicicletas da caloi para crianças de 10 anos. Contudo, avista sua irmã que está furiosa a sua procura. Mister M. se lembra da ameaça da irmã e pensa que precisa fugir, que agora não pode mais retornar para a sua casa. Ele, então, se esconde na casa de um amigo e após passar o susto foge. Fica, assim, perambulando pelas ruas até chegar a cracolândia que dá acesso a comunidade do jacarezinho.
Toda a equipe fica bastante mobilizada com a situação de Mister M., e naquele mesmo dia entra em contato com a rede de cuidados e parceiros que estamos construindo, mesmo no curto período de existência da nossa equipe (apenas 3 meses). Conseguimos abrigá-lo e acolhê-lo no Projeto Impacto Saúde, com apoio do Coordenador Técnico do Projeto Junior. E, com isso, já no dia seguinte foram traçadas duas metas:

1ª Meta) ABRIGO
Levamos o jovem numa cadeira de rodas até o CRAS da nossa região para tentar regular uma vaga através do CREAS. No primeiro dia a assistente social nos informou que não tinha vaga naquele momento, solicitou que tentássemos novamente no outro dia. Insistimos e tentamos no mesmo dia na Fundação Leão XIII, mas sendo a fundação alocada em um prédio, Mister M. não poderia ficar lá pela dificuldade de se locomover sozinho. Enquanto isso, Mister. M. permanecia por mais uma semana no Projeto Impacto, e continuávamos tentando abrigamento para ele. Retornamos ao CRAS com Mister M., na cadeira de rodas, desta vez foi atendido por outra assistente social. Mister M. relatou toda sua história para a profissional, que ao final olhou para mim e para Mister M. e informou que ele dificilmente seria abrigado por não ter perfil. Disse, ainda, que se o tempo na rua de Mister M. fosse maior talvez ela conseguisse. Após esse banho de água congelada, o jovem retornou mais uma vez para o Projeto Impacto.

2ª Meta) CIRURGIA PLÁSTICA
Após lançá-lo no SISREG, apostamos nesse método tradicional e torcemos para que esse processo não fosse muito demorado. Quanto tempo levaria para que Mister M. tratasse de sua perna e realizasse um sonho antigo? Viver plantando abacaxi (nesse jovem existe um desejo antigo de conseguir o seu sustento por esse meio: plantar abacaxis).
Tentamos seguir por outras formas, mas não tivemos sucesso. Procuramos novamente o Projeto Impacto, que implicou duas assistentes sociais para auxiliar na resolução dessas questões, e que se disponibilizaram a resolver a questão do Mister M.. O caminho indicado foi via Ministério Público.
Dessa forma, conseguimos uma Kombi para levar Mister M. para o Ministério Público e, em seguida, ele fora encaminhado para o CREAS Tom Jobim, na Ilha do Governador; onde, então, por meio de muito trabalho, ele conseguiu abrigamento.


Contarei o final dessa história em uma próxima postagem.




História narrada pelo psicólogo Rodrigo Simas

Já de longe vemos miséria, pobreza, degradação, segregação a céu aberto. De perto, o mais terrível cenário já contemplado. Depois de alguns dias de “pedra”, todos são iguais, corpos torrados de sol, descalços, trajando o mínimo de trapos para assegurar alguma intimidade. Os corpos esquálidos dos homens e das mulheres/meninas assustados e negligentes a qualquer contato que não envolva um copo como forma de mediação. As crianças nos dias de chuva se acotovelam como um mar negro e sujo se esquentando através do contato mútuo, inocentemente sexualizado. Muitos ficam na entrada da favela, em frente a um colégio público, não para estudar, mas sim para morar e consumir crack ininterruptamente.

Moléstias de um campo de batalha: desnutrição, desidratação, DST´s, mutilações (alguns sem pernas braços, ou outras partes do corpo), traumatismos (paulada no braço, pazada no rosto), abandonados até a morte, pois em alguns casos o apodrecimento é tamanho que nem entre os próprios usuários conseguem algum apoio e ali jaz mais um. Entre os mais velhos, bebuns, que quando comparados aos crackeiros parecem felizes e serenos, amistosos a um bom papo, e se possível a um abraço.

Muitos não sabem mais como foram parar ali, ou até mesmo como sair. Voltar para casa, jamais (não dizem o nome dos parentes, dos domicílios e se lembram não parecem interessados em relembrar suas origens). Cuidar do corpo, só com alguma insistência acolhedora, sem exageros, e quando a situação já está evidentemente crítica. Um complexo mercado de lixo, no meio do lixo, aonde esse resto serve de fonte de produção de mais gente, mais copos e por conseguinte mais fumaça. Em dias de chuva o campo se obscurece, pois o aglomeramento parece aumentar toda a insalubridade do ambiente. A rua parece exercer alguma atração irresistível aos usuários de pedra, pois a dificuldade de realizar qualquer movimento, no sentido mais literal do termo é radicalmente difícil.

A clínica que abriga a equipe, na qual, são recebidos os usuários fica a menos de cem metros de onde fica a maior aglomeração de usuários (trilho do trem). Mesmo assim, a maior parte dos que são abordados, dizem que irão nos procurar depois. Ao sair das cenas os jovens desmaiam em um sono profundo que dura algumas horas e refeitos voltam rapidamente para mais um mergulho no abismo. Além da ação da equipe do consultório de rua, só entram ali pregadores de todas as espécies, pastores das mais diversas igrejas, membros de uma multiplicidade de religiões, agentes do recolhimento compulsório realizado pela secretaria de assistência social e a polícia. Em quinze dias de trabalho, ainda é difícil conhecê-los pelo nome, pois, ao que parece as aglomerações e homogeneidade do bando, dificultam a aproximação por meio de palavras. Quando muito, percebe-se tímidos sorrisos de poucos visivelmente reprimidos pela cara de contrariedade dos demais. Ao adentrar na favela, um outro modo de civilização se coloca. Mais maconha do que cigarro, bares sempre cheios, com gente bebendo em todos os momentos do dia, entre uma multidão de transeuntes humildes e trabalhadores, três ou quatro espremidos entre um pequeno vão com toldo, apagados durante o dia. Todos cheios de tiques, piscam os olhos, travam ao tentar falar, evitando cruzar os olhos com os que não fazem parte dessa apartada realidade.

 
Cena 1: um pouco de música quem sabe

Saímos em um grupo de cinco pessoas, duas cantando, uma com um violão, uma com pandeiro e eu com um chocalho. Praticamente doidos aprontando maluquices pelo território. A intervenção promove afetações, alguns observam com curiosidade, outros com repúdio e evitação, mas curiosamente alguns arriscam cantar timidamente. Uma menina, diz “eu sei tocar violino... eu fiz meu violino” e entusiasmados nos aproximamos, ela se apresenta e chama seu irmão de idade próxima, companheiro nessa vida. Conta que aonde morava fazia parte de um projeto no qual desde os cinco anos fora introduzida na arte da música. Não vai adiante mas arrisca uma música que mesmo que em tom baixo é cantada pelos cerca de trinta que se aglomeravam naquele ponto, e para surpresa de todos os membros da equipe:

A Casa
“Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entrar nela não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos bobos, número zero.”

Toquinho e Vinicius de Moraes


Apesar da evidente proximidade com a realidade ali existente, não pareciam nada constrangidos com o conteúdo da música. Passado o breve instante de proximidade, nos identificamos e nos colocamos disponíveis para qualquer demanda que venha a surgir.

 
Cena 2: Quase morte

Um senhor pergunta se somos da saúde e informa que um homem está no trilho a poucos metros coberto de moscas e possivelmente morto. Chegamos ao local e avistamos um corpo isolado, entre trapos coberto por moscas. Ao nos aproximarmos, um dos membros da equipe percebe que ainda respira. Identificando no braço, um nome tatuado, começamos a chamar por ele que para surpresa da equipe ergue-se. Surge um jovem com apenas uma perna, que mesmo assim está bastante comprometida (amassada), com ferimentos no rosto, marca de atrito com asfalto, desnutrido, desidratado, com expressão transtornada, olha para os agentes com cara de desespero e é se mostra receptivo a qualquer tipo de ajuda.

Um suposto pastor pára ao lado e começa a proferir que o jovem tem problemas espirituais, lanço um olhar de reprovação e o pregador ensandecido que parece entender o recado aceita pregar em outro lugar. Ninguém dentre os inúmeros transeuntes (motociclistas, pedestres e “trabalhadores informais”) oferece alguma ajuda a equipe. Sem saber o que fazer, tentamos com uma vassoura, fazendo-a de muleta, possibilitar que T. se locomova, contudo não tivemos êxito. Em ato de desespero e sem alternativas em vista, os membros da equipe servem de apoio para que T. se levante. Logo em seguida uma técnica da equipe aluga um carrinho usado para transportar água de um senhor que ali passava. Colocamos T. em cima e enfim levamos o moribundo até a clínica. Ao chegarmos na clínica percebo o quanto sua chegada mobiliza quem está no interior da clínica e que o jovem envergonhado, possivelmente do estado de degradação no qual se encontra, evita contato visual. É levado para a sala de observação e toma um banho. Durante esse momento assisto o jovem dizer: “às vezes o banho refresca até a alma” (sic). Recebe vestes limpas mostrando-se carismático e receptivo, é levado para a sala de curativos para cuidar dos ferimentos que surpreendentemente revelam-se superficiais. Recebe comida e água, contando sua história e demandando ajuda para retornar para casa da mãe, seu local de origem.

Revela: “moro no morro... no município de...” (sic) saiu de casa a bastante tempo, morava somente com a mãe e teve uma das pernas arrancadas pelo trem enquanto estava na linha usando crack. Quanto a perna que lhe restou, estava deformada por conta de um atropelamento de ônibus quando, segundo ele, tentava fugir do recolhimento compulsório. Conta que nesse episódio perdeu a muleta e que acabou sofrendo alguns machucados. Ajudado por alguns usuários foi trazido para a linha de trem, contudo, com a piora de seu estado de saúde ficou a deriva sem conseguir ajuda para sair do lugar. Estava a três dias no mesmo lugar sob sol escaldante sem água, tampouco comida, em estado de putrefação, e por mais que pedisse socorro, dificilmente alguém se disponibilizaria a ajudá-lo. Disse que já tinha desistido, que aguardava a morte e como num milagre “surgimos como anjos de branco” (sic), fazendo menção aos nossos jalecos.

Tendo em vista a necessidade de abrigá-lo para que se reestabelecesse fisicamente, entramos em contato com o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), o Centro de Recepção de Adultos e Famílias (CRAF Tom Jobim) e a delegacia de polícia, mobilizando toda a equipe e mais alguns solícitos técnicos da clínica. A princípio não conseguimos vagas, depois de muita insistência faltavam muletas para que fosse abrigado que foram providenciadas, levamos ele a delegacia mais próxima para que retirasse o RED (Registro de extravio de documento), já que não tinha nenhum documento em posse e finalmente conseguimos transporte que o levasse enfim para o abrigamento. No fim desse processo de aproximadamente duas horas, T. se despede da equipe emocionado, dizendo que entraria em contato. Enfim sensação de dever cumprido.

Passado o fim de semana ao chegar na clínica recebemos a notícia da redutora de danos que mora na comunidade de que T. voltou para o mesmo local de onde foi resgatado dois dias depois com as muletas novas. Alegou que o abrigo estava muito vazio e que sentiu falta dos colegas. Moral da história: morar na rua para alguns é uma necessidade, mas para muitos é uma escolha, espécie de “casa muito engraçada...”.






Um comentário:

  1. É comovente o empenho da equipe de ESF para mudar para melhor as tristes histórias de pessoas que estão na rua. Parabéns a todos vocês! Um abraço da Equipe OTICS Lins!

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